O GLOBO - Zona Sul |
Rio, 24 de agosto de 2006
Sem-teto criam raízes em casarão
Há quase dois meses no Largo do Boticário, ocupantes recebem turistas e vendem bijuterias
Guilherme Freitas
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Em sua primeira visita ao Largo do Boticário, as amigas Dalila Ramos, Albertina Ferreira e Marlene Mesquita encontraram um cenário diferente do que imaginavam no principal imóvel do largo, a mansão rosa tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural. O local está ocupado por 104 sem-teto desde 6 de julho.
Na entrada da mansão, elas passaram por barraquinhas que vendiam cordões, pulseiras e bolsinhas. Encontraram alguns ocupantes nos degraus e circulando pelos jardins. Um deles se ofereceu para guia-la numa visita pela casa.
– Aquela árvore foi plantada por Walt Disney - apontou Sílvio Fernandes Valença, ex-vendedor de livros que se juntou à ocupação pó não ter como pagar um aluguel de R$ 280.
Dalila, de 76 anos, decepcionou-se com o precário estado de conservação da mansão de 15 suítes, dois salões, um jardim de mil metros quadrados, com uma fonte natural e uma capela:
– É triste ver um patrimônio da cidade nesse estado. O casarão deveria ser preservado.
No interior da mansão, as paredes estão descascando e pedaços do teto caíram. O líder dos sem-teto, Jurandy de Castro, diz que os ocupantes já encontraram a casa, construída nos anos 30, em mau estado.
Bruno Siciliano, advogado da proprietária do imóvel, Sybil Bittencourt, filha do dono do extinto jornal "Correio da Manhã", acusa os sem-teto de terem depredado a mansão para usar o abandono como justificativa para a ocupação.
Segundo Jurandy, as 22 famílias instaladas na casa se sustentam com o auxílio dos ocupantes que têm emprego. O orçamento é reforçado pela venda de bijuterias a turistas. Em meio à penúria, um sinal de luxo: a única TV da casa é equipada com um DVD.
Fotos de Letícia Pontual: Esquerda - Os sem-teto vendem cordões e pulseiras em barracas, na porta do casarão. Direta - Num dos quartos, crianças assistem a um programa na TV, equipada com DVD
Planos para ateliê e centro cultural
Prestes a completar dois meses no casarão, os sem-teto fazem planos para o futuro. Castro diz que pretende transformar a garagem da mansão num ateliê para que algumas ocupantes possam trabalhar como costureiras.
– E o casarão pode virar um centro cultural - diz, sem especificar, no entanto, do que se trataria e como seria financiado.
Siciliano critica duramente a proposta: – São aproveitadores, vão fazer o que ali? A casa vai acabar virando um barraco.
O advogado diz que Sybil, que é dona de outras quatro casas no largo, tem um projeto de restauração do imóvel, para transforma-lo num centro cultural. Mas ele também não especifica que tipo de atividade seria desenvolvida no local e quem o patrocinaria.
Siciliano entrou com uma ação de reintegração de posse logo após a ocupação. A primeira decisão foi favorável, mas os sem-teto recorreram. Siciliano espera nova decisão ainda esta semana.
Após a invasão, a prefeitura assinou decreto tornando o casarão de utilidade pública, o que facilitaria ações de despejo. Mas nenhuma atitude foi tomada até agora.
– Como é imóvel privado, não podemos entrar. O ato de declarar de utilidade pública foi preventivo. A solução será privada - justifica o prefeito César Maia.
Foto de Letícia Pontual: O varal estendido nos fundos da mansão: depois de quase dois meses de ocupação, sem-teto planejam centro cultural
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Fio da meada
Um grupo de 104 sem-teto ocupou o casarão do Largo do Boticário, em 6 de julho. A proprietária Sybil Bittencourt, de 80 anos, filha do dono do "Correio da Manhã", entrou com uma ação na Justiça pedindo reintegração de posse, mas a decisão definitiva ainda não foi anunciada. Uma semana depois da invasão, o prefeito em exercício, Ivan Moreira, assinou um decreto tornando de utilidade pública as casas do Largo do Boticário. A medida cria condições para a desapropriação, que depende da decisão judicial.
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