“Uma mulata ou um papagaio”
De nada adiantou fechar os olhos, pilhas gastas no relógio da cozinha, anos e anos sem usar um deles no pulso.
“Sergio, olha só a tua filha. Uma moça”
Nos últimos meses, talvez para me provocar, ela vem brincando com as minhas recordações.
“Pai, me abraça como voce fazia quando eu era do Mira-Mira”
Ela inventou, entre tantos inventos que me ajudaram a viver, esta corruptela para o Colégio Miraflores, onde estudou quando ainda cabia no meu colo.
“Acorda ela que daqui a pouco o ônibus chega”
Levei ela para a escola quase todos os dias, e buscava também, desde cedo e até bem pouco. Derramei sobre ela amor e saudades dos outros dois.
“Querida, acorda. O ônibus está chegando, seus amigos estão chegando, sua mãe já está pronta, seus tios e seus irmãos não vão”.
Reconheço que atropelei o sono dela com este turbilhão de informações. Mas, afinal, ela também atropelou meu sono todos os dias, com cada centímetro crescido.
“Pois é, dezoito anos”
Duas viagens para comemorar. Uma começa hoje, para a Fazenda, ônibus fretado repleto de amigos. A outra daqui a quinze dias, acúmulo de presentes devidos, para a Europa.
“Pai, prefiro voltar no Domingo só depois do jogo”
O Flamengo, do Ronaldinho Gaucho, vai jogar com o Boavista. E, pasmem, vale a liderança. Companheirona, não perde um jogo. E como joga bem.
“Sergio, tá tudo pronto pra viagem”
E eu aqui, viajando nas teclas, digitando, digitalizando as batidas emocionadas do meu coração.
“Quando eu for pra Inglaterra, tenho que levar um presente para um conhecido”
Presente oriundo do Rio de Janeiro tem que ser colorido como meus sonhos, jovem como minha filha, alucinógeno como meus sonhos e devaneios.
“Pai, queria te dizer uma coisa. Sabe, esse negócio de crescimento, de formação de filhos, de educação. Voce fez um trabalho legal”.
Fechou.
Avisado, por ela, que a tarefa foi concluída, que ela vai ganhar o mundo, que o mundo ganhou ela.
Meu presente. Que a vida me deu.
Presente meu. Que o mundo me leva.
“Sergio, aquele amigo da Inglaterra mora só com a mulher em Cambridge, os filhos crescidos já saíram de casa, e ele anda meio triste, desanimado. E eu ainda não sei o que levar para ele”
Sergio Castiglione
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