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© 2005 Isabel Vidal
Todos os direitos reservados



24/09/2010

CAFÉ COM LEITE e PÃO COM MANTEIGA

Início da tarde e lá ia eu, dentro do carro, descendo a Rua Cosme Velho em direção ao trabalho.
Enquanto o transito congestionado se arrastava, assistia o interminável desfile de fotos e números plantados nas calçadas, e me permitia uma viagem interior, muito mais agradável que aquela que as buzinas e os carros de som anunciavam.

Como a maioria das ruas do bairro, o da minha infância também tinha ladeira, só que dos dois lados.

Acho que São Cristóvão foi construído sobre uma porção de pequenos montes.
Mesmo morando na Tijuca desde os 5 anos, passei toda a infância e juventude lá, na casa dos tios. Requisitos de logística para os meus pais, e de afeto para mim.

Minha família morava num prédio baixo, bem no topo do monte.
Em frente ficava o Colégio Pio Americano, de freiras e de meninas que faziam votos, com um extenso terreno cheio de árvores que davam frutos, onde caiam muitas pipas.
Muro alto, mais de quatro metros, com três cães de guarda, que só os mais ousados escalavam, e eu entrava apenas quando acompanhava meu pai em dia de eleições.
Minha mãe votava no Colégio Cyleno, que já era colégio misto.

A Rua Argentina tinha uma das descidas para o lado da Rua São Januário.

Aquele era o lado do comércio de bairro, das compras anotadas no livro do armazém do Seu Abílio e do Seu Mario pra pagar no fim do mês, da sinuquinha do seu Bimba onde se instalou a primeira loteria esportiva do lugar.
Uma vez fiz treze pontos na Loteca, junto com um monte de gente, e comprei uma calça Lee contrabandeada. O resto foi gasto num churrasco pro pessoal.
Pra lá ficavam também a farmácia, o armarinho, o bicheiro e o ponto de táxi da Margarida, todos na esquina da Teixeira Junior.

A outra descida dava na Rua Senador Alencar.

Levava, talvez por ser mais próxima da Avenida Brasil, para o lado dos galpões, pequenas fábricas e grandes indústrias. Daquele lado também ficavam alguns terrenos baldios, e bem na esquina com a nossa rua, o trinta e cinco.

Mal terminava o almoço e o pessoal ia chegando, os times se formando ainda fora do campo.

Para o "TRINTA", terreno enorme de barro batido, se dirigiam os times formados, para as peladas domésticas e para um ou outro "jogo contra". Era o lugar que tinha o melhor vento e a melhor visão para cortar todo mundo "na mão", cantarolando o "tá com medo tabaréu".
Exceto nos fins de semana, o espaço era da garotada.

Quando chegava o meio da tarde, gritos ecoavam naquela direção, as mães chamando os filhos:
Serginhoooo.
E não tinha quem não parasse o jogo para atender o chamado.
Não era de medo não, que respeito coisa nenhuma.
Era fome, da boa.

Debaixo das janelas, o dinheiro jogado, amassadinho.
Era sagrado.
O do pão.
Às vezes, também dava pra comprar presunto.
Quem demorasse pegava fila grande na padaria da São Januário, em frente a Dom Carlos.
Bisnaga embaixo do braço, uma corrida até em casa, café com leite e pão com manteiga.

São quatro horas da tarde e hoje resolvi não trabalhar.
Ao invés do lanche rápido, o tal fast-food trazido pela secretária, fui pra fila da padaria.

Hoje o pão é diferente.

A farinha não é nunca do mesmo saco.

E o tempo vai passando, como a manteiga no pão, pra lá e pra cá.

Saudades de São Cristóvão


Sergio Castiglione


                                         ..Junto a minha rua havia um bosque
                                  Que um muro alto proibia
                                  Lá todo balão caía
                                  Toda maçã nascia
                                  E o dono do bosque nem via


                                                ..Toda a dor da vida
                                  Me ensinou essa modinha
                                  Que, de tolo
                                  Até pensei que fosse minha


                                                                        ATE PENSEI
                                                                                        (Chico Buarque)


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