31/07/09 - UM BAIRRO MELHOR
OS SONS DO BAIRRO
Ouço Fogos?
O SOM DAS 3
Acordei durante a madrugada com barulho que se assimilava a estampidos.
Passados alguns segundos meu arquivo de memória, usando minha placa de som já um pouco desgastada pelo tempo, me enviou a informação correta: o ruído que atormentou meus sonhos e prejudicou meu sono não era de tiros, e sim da passagem de carros sobre uma placa de aço que cobria um dos muitos buracos abertos pela nossa Companhia de Gás.
O SOM DAS 5
Não costumo sair muito do Rio de Janeiro, e quando o faço uso meu carro. Gosto tanto de aviões e aeroportos quanto de usar ternos. Estes eu usei apenas seis vezes na vida, aqueles eu nunca usei. Tenho convivido bem com dois ternos ocupando espaço no meu armário, por opção. Entretanto, sem poder optar, tenho dividido os sons de meus dias com os aviões que sobrevoam o Cosme Velho em direção ao Santos Dumont com freqüência cada vez maior. Que Deus nos proteja, ao menos, das falhas do tubo Pitot.
O SOM DAS 6
Moro junto à Igreja São Judas Tadeu. Por aqui ainda há traços visíveis da vida da Mata Atlântica. Os micos povoam as árvores e os pombos interminavelmente alimentados se multiplicam. Ultimamente o som destes habitantes mais chegados tem sido abafado ao amanhecer pelo som de um pequeno e renitente pássaro, que grita e grita e grita, e ataca um belíssimo gavião que por aqui chega nestas horas e se instala no alto da Igreja.
O SOM DAS 7
Acordado, higiene feita, rumo à padaria. Os carros ainda não circulam em grande quantidade, embora vans escolares e ônibus de linha haja demais. Graças a Deus os ônibus de turismo ainda não chegaram. Pensando distraído no desagradável barulho dos veículos motorizados, quase atrapalho e derrubo o padeiro da bicicleta que sobe e desce as ruas do bairro cantando e fazendo coro, eco, e backing vocal para o Bom Dia da Conceição.
O SOM DA MANHÃ
Próximo daqui de casa estão situadas duas escolas católicas de grande tradição. O SION e o São Vicente de Paulo (que, aliás, está fazendo 50 anos). O bairro tem sua manhã permeada pelos sons e cores das crianças e adolescentes destas escolas, assim como das que freqüentam as escolas municipais e estaduais situadas mais abaixo, lá pros lados daquela tal agência do Bradesco. Vez por outra tem som de freada e o som do coração aumenta, já que o trânsito é caótico, os sinais de pedestres são caóticos, e muitos motoristas são caóticos. Mas, como dizem que Deus protege os bêbados e as crianças....
O SOM DO MEIO-DIA
Talvez o Padre da Igreja São Judas Tadeu esteja apenas querendo nos dizer que Deus está atento. Nós já sabemos, afinal ELE é brasileiro, e por aqui é também rubro-negro. E se já o temos no coração, desnecessário é tê-lo diariamente nos ouvidos. Mesmo sendo linda a Ave Maria, temo que outras Igrejas também se descubram com o direito de usar desmedidamente o alto-falante para propagar sua fé.
O SOM DA TARDE
Minha filha já chegou em casa. Aqui se ouve "Los Hermanos", "Amy Winehouse" e outras canções que embalam paixões adolescentes. Raramente sonetos. As horas da tarde são as horas da paixão, dos sons do silêncio. Também do "vassoureiro". Do MP3, do Ipod e dos celulares. Do sol se pondo, em surdina ou ao som de um saxofone.
E às 18 em ponto, São Judas nos lembrará novamente da existência de Deus.
O SOM DA NOITE
O Cosme Velho é um bairro calmo. Talvez por esta razão tenha ruas tão vazias à noite. Na praça deserta dá pra ouvir o som do caramujo em constante mudança. Os moradores comemoram em festas ou pequenas reuniões estas dádivas de Deus. Às segundas e terças com a pizza do Varandas. Vez por outra com aniversários nos Plays ou nas casas de festas e escolas. Às sextas e sábados, com alguma freqüência, em festas "have" ou em bailes "funk". Mas nos fins de semana também tem festa em casa de "gente bem", com som alto até a madrugada.
O SOM DA MADRUGADA
Quando criança, eu morava numa rua de ladeira em São Cristóvão. Durante o dia, descíamos a rua em carrinhos de rolimã sob as reclamações das casas térreas e os latidos felizes dos meus cães. A madrugada do Cosme velho também tem muitos latidos de cães, estressados e em guarda. As rodas de bilha evoluíram e tem som de fibra de carbono equipando vistosos e ágeis Skates. Mas não tem casa de andar térreo. Nem o cheiro das popetas da minha avó Philomenna.
Foi um dia exaustivo.
Andei muito.
Pelo bairro e pelas lembranças.
São duas horas da manhã.
Ouço fogos.
Sérgio Castiglione
Médico Pediatra
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