CONVERSA DE LIVRARIA
A partir deste mês, esta coluna publicará todas as crônicas e poemas do Concurso Laranjeiras em Prosa e Verso.
Iniciaremos por uma das crônicas classificadas em primeiro lugar “Pudim de cachaça” de Maria Angélica Mounerat Alves. Este é o presente de Natal aos leitores do Folha da Laranjeira.
Pudim de Cachaça
Baixo, negro, bigodes ralos. Os olhos, duas bolas avermelhadas. Os pés, inchados, crestados.
Era o Pudim. O Pudim de cachaça. Amigo das crianças, dos velhos e dos cães sem dono. Sua casa era a praça São Salvador. Como cama, os bancos de duras ripas de madeira.
Era o Pudim. Aliás, o Augusto. Era como queria que o chamassem. O “gusto” soava “guchhto”.
Sexta-feira era festa. Era feira.A praça se enchia de barracas coloridas, de feirantes sacrificados. As hortaliças, as frutas, os peixes, tudo era alegria para o Pudim. Nesse dia, ele esperava a hora da “xepa” e, infalivelmente, levava para minha mãe ora uma tangerina, ora um ramo de flores murchas. Chamava-a ”madrinha”, porque ela era a única que o tratava pelo nome.
Os moleques da rua, ao fim de certo tempo, já não o importunavam mais. E o apelido de trocista, passou a carinhoso.
Os motoristas dos ônibus que faziam ponto na praça, adotaram-no. No final de semana, pagavam-lhe a barba. No final do mês, o cabelo. E o Pudim passou a ajudar na manutenção dos carros. Por um nada sentia-se importante.
A casa continuava a ser a praça. A escadaria do chafariz, o local ideal para curtir a bebedeira diária. E assim levava a vida o Pudim.
Num dia de inverno brabo, encontraram-no morto. Alvoroço na praça. Os motoristas se cotizaram, pagaram o enterro (teve até coral). E, sete dias depois, a missa. Tudo dentro do usual.
A praça, agora, abriga outros moradores: bêbados, mulheres edemaciadas, crianças sem lar. Mas nenhum deles consegue ter a dimensão sentimental do Pudim. São anônimos, fila interminável de vidas mortas, nenhum se nos destaca.
Os motoristas de ônibus já não são mais os mesmos, as crianças cresceram, a feira mudou de lugar.
Entre o passado e a noiva realidade, a imagem do Pudim permanece: comovente, patética, intemporal, dando-nos a certeza de que ele morreu Augusto, como sempre quis.
Maria Angélica Mounerat Alves